Lúcifer e Prometeu

Prefácio ao livro de Z. Werblowsky
C. G. Jung

O autor deste livro subtemeu-me o seu manuscrito, pedindo-me que escrevesse uma introdução para o mesmo. Como se trata substancialmente de uma pesquisa sobre história da literatura não me sinto absolutamente com competência para expressar minha opinião a respeito. Mas o autor reconheceu muito acertadamente que, se o problema do Paradise Lost constitui, antes de tudo, objeto de crítica, no fundo trata-se de uma obra confessional, que não tem pouco a ver com certos pressupostos psicológicos. É verdade que ele tocou apenas ligeiramente nestes últimos - aliás "expressis verbis" - mas o fez com suficiente clareza, de modo a se perceber a razão pela qual apela para o meu interesse por questões de psicologia. Entretanto, por menos inclinado que eu me sinta a considerar a Divina Comédia de Dante, o Messias de Klopstock ou a obra de Milton como um campo particularmente favorável para um comentário psicológico, não posso deixar de reconhecer o tino especial do autor em relação a este ponto. Não há dúvida de que ele notou que a problemática de Milton talvez pudesse ser explicada pelo tipo de pesquisa que corresponde ao meu campo específico de trabalho.
Trata-se da figura de Satanás que ocupa, como tema tradicional, de um lado, o pensamento e a criação artística poético-religiosa, e, do outro, constitui, como mitologema, uma expressão constante há dois mil anos e resultante, originariamente, do processo inconsciente de formação de certas imagens "metafísicas". Nosso julgamento certamente estaria errado, se admitíssemos que tais representações provêm da interpretação racionalista. As antigas imagens dos deuses, e mesmo o pensamento em geral, mas de modo particular o pensamento numinoso, têm sua origem na experiência vital. O pensamento aparece ao primitivo; não é produzido. O pensamento orientado constitui uma aquisição relativamente tardia. Assim, a imagem numinosa é muito mais uma expressão de processos inconscientes do que o resultado de uma operação racional. Isto faz com que ela seja incluída na categoria das realidades psicológicas, surgindo daí o problema relativo a seus pressupostos psíquicos. Temos que pensar aqui num processo de formação de símbolos que se estende por vários séculos e tende constantemente a tornar-se consciente. Começa nas brumas do passado pré-histórico, com as imagens primígenas a que chamamos arquetípicas e, progressivamente, num trabalho lento e contínuo de diferenciação, as conduz a uma configuração consciente. Podemos ilustrar, o que acabamos de dizer, com exemplos tirados da história das religiões ocidentais. Refiro-me à evolução do dogma de que também faz parte a figura de Satanás. Um arquétipo bastante conhecido é, por ex., a tríade divina que se perde nas cinzas do passado. Nos primeiros séculos da era cristã ela volta a aparecer na fórmula trinitária cristã na versão pagã: "Hermes ter unus!". Também não é difícil perceber que a grande deusa de Éfeso ressucitou na mãe de Deus. Esse último problema, depois de uma latência aparente de vários séculos, retomou seu fluxo com a Conceptio immaculata e recentemente com a Assumptio. A imagem da Mediatrix quase atinge a perfeição almejada pela antiguidade. E aqui é oportuno observar, de modo particular, que por trás da " declaratio solemnis" não está absolutamente uma opinião arbitrária da autoridade papal, mas um movimento anônimo do povo católico. Os inúmeros milagres atribuídos a Maria, e que procederam estas definições, são também autóctones e brotam diretamente da vida psíquica inconsciente do povo, como experiências genuínas e verdadeiras.
Não quero aqui acumular desnecessariamente os meus exemplos, mas apenas deixar indicado que a figura de Satanás passou por uma estranha evolução, desde seu primeiro e obscuro aparecimento nos textos do Antigo Testamento, até um verdadeiro "florescimento" no seio do cristianismo. Ela tornou-se clara de inegável como personificação do princípio mau e adverso; mas não foi a primeira vez que isso ocorreu, pois alguns séculos antes já encontramos o Seth dos egípcios e o Ahriman dos persas. Houve quem admitisse a influência principalmente persa em relação ao demônio cristão. Mas é a concepção de Deus como summum bonum, a qual se distingue nitidamente da concepção do Antigo Testamento e postula diretamente - por motivo de equilíbrio psicológico - a experiência de um summum malum, que constitui o fundamento propriamente dito da figura do Diabo. Entretanto, para se chegar à existência deste summum malum não se necessitava de um raciocínio lógico, mas apenas da tendência natural e inconsciente ao equilíbrio e à simetria. É por isso que já encontramos em Clemente de Roma a concepção de Cristo como a mão direita e do Diabo como a mão esquerda de Deus, sem falar da visão judeu-cristã que conhecia dis filhos de Deus, sendo Satanás o filho mais velho e Cristo o filho mais novo. A figura do Diabo alçou-se então, à uma altura metafísica de tal intensidade, que foi preciso, a partir do século IV, despojá-la energéticamente de seu poder, aliás sob influência ameaçadora do maniqueísmo. Isto se fez mediante uma reflexão - desta vez de maneira racionalista, e ue é, ao mesmo tempo, um verdadeiro exemplar de sofisma - ou, mais precisamente, pela definição do mal como sendo uma privatio boni. Tal fato, entretanto, não impediu que surgisse, no século XI, em muitos lugares da Europa (sob o influxo do catarismo), a crença de que foi o Diabo e não Deus que criou o mundo. Isto fez com que o arquétipo do demiurgo imperfeito, que gozara de particular estima, sobretudo, e por último entre os gnósticos,reaparecesse sob uma forma modificada. (O arquétipo que conduziu a isso deve ser procurado, ao que me parece, no primitivo jester cosmogônico). Com a erradicação da heresia, que se estendeu até os séculos XIV e XV, houve uma certa pausa; mas com a Reforma Protestante a figura de Satanás voltou a ocupar a atenção dos homens. Basta lembrar a imagem que Jacob Boehme traçou do Mal, que deixa bem para trás a da privatio boni. O mesmo se pode dizer de Milton. Esse pertence ao mesmo clima. Embora Boehme não tenha provindo, a rigor, da filosofia alquimista, ainda hoje muito depreciada, o certo é que extraiu dela certas idéias-mestras, entre as quais uma particular estima por Satanás, o qual em Milton ganhou proporções de figura cósmica de primeiro plano, emancipando-se inclusive do papel obediente de mão-esquerda de Deus (reconhecida por Clemente). Miton vai mais longe que Boehme, e concebe o Diabo como um verdadeiro principium individuationis, significado este que os alquimistas já haviam pressentido há muito. Para citar apenas um exemplo: "Ascendit a terra in coelum, iterumque descendit in terram et recipit vim superiorum et inferiorum. Sic habebis gloriam totius mundi" (Ele sobe da terra ao céu, e de novo desce do céu à terra e recebe a força do alto e de baixo. Assim terás toda a glória do mundo). É deste modo que se expressa uma clássica autoridade alquimista, cuja validez, ao que me parece, se estendeu pelo menos ao longo de treze séculos de alquimia. As palavras acima se referem não propriamente à Satanás, mas ao "filius Philosophorum", cuja simbologia coincide com a do si-mesmo, como creio ter demonstrado. O "filius" dos alquimistas é uma das formas de manifestação de Mercúrio, definido como "duplex" e "ambiguus" e conhecido também fora do âmbito da alquimia como "utriusque capax" - capaz de tudo. Sua metade "obscura" tem relação com Lúcifer, como pode se demonstrar.
Na época em que Milton escreveu sua obra, estas idéias andavam no ar, isto é, faziam parte do patrimônio cultural mais ou menos comum, e houve alguns mestres que estavam até mesmo cônscios de que sua pedra filosofal nada mais significava que o homem todo. O próprio paralelo Satanás-Prometeu mostra-nos muito claramente que o Diabo de Milton constitui uma encarnação do processo de individuação humana e, por isso, entra na esfera da Psicologia. Esta proximidade, como sabemos, se revela perigosa não só para a metafísica de Satanás, como igualmente para a de outras figuras numinosas. Com o advento do iluminismo, a metafísica sofreu um abalo e a cisão que daí resultou, entre Ciência e Fé, não pôde ser mais reparada. É verdade que as figuras mais numinosas da metafísica puderam ser reconstituídas de algum modo, mas isso não ocorreu com o Diabo. No Fausto de Goethe ele se transforma no espírito "familiaris" de natureza muito pessoal, na "sombra" do herói esforçado. O protestantismo racional liberal o excluiu, por assim dizer, da ordem do dia. Foi relegado a segundo plano, como figura incômoda do Olimpo cristão, e com isso se impôs o princípio, aliás bem visto pela Igreja, de que "omne bonum a Deo, omne malum ab homine" (Todo bem provém de Deus e todo o mal provém do homem). O Diabo passou então ao âmbito da Psicologia.
Mas uma das regras da Psicologia diz-nos que o arquétipo que perdeu sua hipóstase metafísica se identifica com a consciência individual, a influencia e a transforma segundo as suas tendências. E como um arquétipo possui sempre uma certa numinosidade, sua integração produz, em geral, uma inflação do sujeito. Por isso está em consonância com a expectativa psicológica a definição que Goethe dá ao seu Fausto, como sendo o super-homem. Esta figura penetra, através de Nietzsche, a Psicologia política, até a época mais recente, mostrando que se encarnou na criatura humana, com todas as consequências decorrentes de uma tal dominação.
Como os indivíduos humanos não estão separados uns dos outros por compartimentos estanques, esta inflação infecciosa se alastrou de maneira geral, produzindo uma insegurança moral e lógica verdadeiramente notável. O médico psicólogo deve interessar-se por esta última, por razões ligadas à sua profissão, e é isto que leva um psiquiatra a escrever uma introdução a um estudo crítico sobre o Paraíso de Milton. Como se trata aqui de um encontro sumamente disparatado, o melhor meio de desincumbir-me desta tarefa foi talvez este: o de explicar ao leitor benévolo, com certa abundância de detalhes, como é que o Diabo foi parar no consultório do psiquiatra.

Comentários

  1. Bem interessante o texto. Posso dizer dele que, sob uma perspectiva analítica, considerando que um dos pressupostos do cristianismo é a aniquilação do ego, tem-se que o homem é, por natureza, satanista.
    Outro fator a ressaltar é a relação descrita acima com a mudança de paradigma ocorrida com o surgimento do iluminismo.
    O iluminismo foi uma revolução acerca da compressão que o homem tinha de si e da natureza, foi um movimento humanista, de valorização do homem, demonstrado com o seu domínio sobre a natureza e seu poder de intervir e provocar a alteração de eventos históricos, principalmente por meio da técnica e das descobertas científicas...
    Se continuássemos com aquela forma de pensamento teológico-metafísico certamente nenhum progresso científico e tecnológico teria ocorrido para o bem da humanidade.

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